segunda-feira, 18 de agosto de 2008

PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421. ENTRE O LUGAR E A METÁFORA: CULTURA E COMUNICAÇÃO NA CIDADE CONTEMPORÂNEA
Leopoldo Guilherme Pio1
Sentimos que não somos mais homens de catedrais, palácios, tribunas, mas sim de grandes hotéis, estações ferroviárias, imensas estradas, portos colossais, mercados cobertos, galerias luminosas, de perspectivas retas, de demolições necessárias.
Massimo Canevacci
Resumo
Este ensaio tem por objetivo discutir as relações entre cidade contemporânea, cultura e comunicação. Partimos do pressuposto que a cidade se tornou protagonista dos processos econômicos e culturais fundamentais à sociedade contemporânea, por meio da convergência entre cultura, consumo e comunicação. A dimensão cultural do meio urbano passa a desempenhar papel primordial no seu desenvolvimento econômico. Propõe-se, assim, entender de que maneira as imagens urbanas viabilizadas pelos meios de comunicação são apropriadas pela lógica do mercado.
Palavras-chave: cidade, cultura, imagem urbana, consumo.
Abstract
This essay hás for objective to discuss the relations between temporary city, culture and communication. The hypothesis of this work is concerned with the city became protagonist of basic the economic and cultural processes in the society contemporary, by means of the convergence between culture, consumption and communication. The cultural dimension of the urban space starts to play primordial role in its economic development. It is considered, thus, to understand how the urban images made possible by the Medias are appropriate for the logic of the market.
Word-key: City, culture, urban image, consumption
1 Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Especialista em Jornalismo Cultural pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da mesma instituição. É professor da graduação em Comunicação da Universidade Estácio de Sá, onde leciona Sociologia, Cultura Brasileira e Projetos Experimentais. Desenvolve pesquisas sobre a revitalização urbana e o papel da mídia impressa na produção social da memória coletiva.
65 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
2 Destaco especialmente as cidades classificadas como "megalópoles". Estas podem ser caracterizadas como as cidades que sofreram um vertiginoso crescimento urbano a partir da década de 70; pelo fato desta aglomeração não se dever ao crescimento vegetativo, mas à convergência maciça de populações de outras origens; e pela consequente formação de uma civilização multicultural, composta por subculturas fundadas a partir de diferenças de critérios de distinção específicos - a nacionalidade, a classe social, a etnia, convicções religiosas, grupos etários, o gênero ou os hábitos sexuais.
3 Devo sinceros agradecimentos a Prof. Dra. Luciane Lucas pelos comentários e críticas à primeira versão deste texto.
4 Segundo Lucrécia Ferrara, as imagens urbanas - os monumentos, praças, fatos e informações históricas, o planejamento urbano e suas repercussões nas mídias - constituem um "sistema de ordem que comunica um código, um modo de entender, avaliar e valorizar a cidade". Assim, prossegue Ferrara, [...] no nível simbólico, corresponde a uma didática que ensina o que é e quem é na cidade. A imagem hierarquiza o espaço urbano na
Cidade e Cultura
O que é uma cidade, hoje? O que ela significa e como seus significados são assimilados por nós? Se entendermos a cidade como a projeção da sociedade em um determinado local (Lefebvre 1991), perceberemos que o espaço urbano é o palco aonde convergem múltiplas experiências humanas. Para nós, pesquisadores, a cidade contemporânea2 é uma fonte inesgotável de fenômenos que carecem de interpretação - as tribos urbanas, a degradação do espaço público e a sua revitalização, a cultura das favelas, o papel sociocultural dos shoppings. 3
Tais fenômenos demonstram que a cidade, além de ser um espaço físico organizado de forma específica, é também o lugar no qual é possível emitir valores, fixar identidades coletivas ou afirmar determinadas representações sociais. Toda cidade implica em uma representação de cidade, na medida em que esta se constitui a partir de imagens e símbolos historicamente construídos. 4 Toda cidade é uma metáfora de si mesma.
Este ensaio tem por objetivo refletir a respeito dos usos e papéis desempenhados pelo espaço urbano na contemporaneidade, considerando o papel do conceito de cultura nas suas vinculações com a comunicação e o consumo. Na próxima seção, abordaremos a especificidade da vida urbana e da influência da cultura mediática. Em seguida, trataremos o impacto da "economia da cultura" na lógica urbana e por fim, exploraremos as relações entre consumo e cidade.
Cidade e Cultura Mediática
As cidades modernas surgem em meados do século XVIII em decorrência da industrialização e do desenvolvimento capitalista e, mesmo incorporando locais da cidade tradicional, se estruturam segundo princípios totalmente diferentes dos assentamentos urbanos
66 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
medida em que é a sua referência: a praça central, o edifício pós-moderno, o monumento histórico, a rua que se dimensiona na imagem de uma avenida ou de um beco" (Ferrara 1993, p.245-6).
5 O texto de Simmel data de 1902. Segundo o autor, a complexidade dos fenômenos urbanos modernos produz um intenso estímulo sobre a vida psíquica dos habitantes. Isto torna a personalidade urbana mais refinada e complexa, de modo a "controlar a complexidade e a extensão da vida moderna, bem como os impulsos irracionais da personalidade" (Simmel 1979:16-7). A metrópole moderna imprime a formalização e racionalização das relações sociais, forçando a vida mental dos citadinos a se ajustar aos mecanismos de produção e reprodução de mercadorias. Por isso, o comportamento típico da metrópole é a atitude blasé - a ausência de reação após fase de intensa integração a vida moderna, ou a "auto preservação pela desvalorização total do mundo objetivo" que se traduz pela incapacidade de discriminar valores e significados específicos.
pré-modernos. Esta especificidade é assinalada por Simmel (1979), ao perceber que a fragmentação e a descontinuidade do tecido urbano possibilitam a formação de uma vida psíquica metropolitana extremamente complexa.5 Neste sentido, a urbanidade moderna como um modo de vida distinto, calcada em estruturas físicas, organizações sociais e comportamentos coletivos específicos.
Neste sentido, o espaço urbano moderno pode ser visto como uma paisagem complexa que produz um fluxo intenso de relações sociais, informações e sentidos. Mas, no caso contemporâneo, pode-se perceber não só uma radicalização desta complexidade, mas também a reconfiguração da cultura urbana. Se tradicionalmente os espaços urbanos se caracterizavam pelos seus atributos históricos e estéticos, hoje as cidades são definidas não só pelo tipo de administração ou de economia, mas principalmente pela tecnologia, o mercado e o sistema de transportes e de comunicação. É sintomático que, no início dos anos 80, Giulio Carlo Argan destaque a mudança no sentido e função do espaço urbano:
Não só a cidade moderna é um sistema de informação e comunicação, como se integra em uma cultura reduzida, ou em vias de reduzir-se, a nada mais do que um sistema de informação e comunicação. O processo em andamento é o da transformação estrutural da cultura de classe em cultura de massa, [...] uma cultura cuja grande estrutura é justamente, a informação. As perguntas que, portanto, são as seguintes: [...] a cultura de massa, reduzida a circuito de informação, é conciliável com a historicidade institucional da cidade? E, em outro plano, é possível uma passagem, nem traumática, nem destrutiva, do sistema da história ao sistema da informação? (Argan 1995, p. 244-5).
Paradoxalmente, o interesse atual pela cultura da cidade e estilos de vida urbanos tem aumentado significativamente nas últimas décadas. Featherstone assinala a importância atribuída a cidades específicas (como Barcelona ou Rio de Janeiro), vistas como produtoras de capital cultural, histórico e estético singular. Como entender este novo condicionamento do patrimônio cultural e urbano?
67 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
6 A noção de indústria cultural aparece pela primeira em vez em artigo homônimo de Theodor W. Adorno e Max Horkenheimer, no livro Dialética do Esclarecimento, publicado em 1947. Refere-se, originalmente, a exploração industrial da cultura feita especialmente pelo cinema norte americano, considerado então como manipulador e escapista. Desde essa análise pioneira, o termo se ampliou para designar os meios industriais de produção de cultura de massa – indústrias fonográficas, cinematográficas, editoriais, entre outras.
Sem dúvida, a inserção da cultura na lógica urbana mudou devido ao avanço da indústria cultural6, que possibilitou não só a organização da cultura como forma de entretenimento, mas também a ampliação do acesso a bens culturais e de consumo, ao permitir uma comunicação "multidirecional", que compromete todos os sentidos do espectador e que nos alcança independentemente de nossa atenção ou interesse. Mas a grande novidade é o embaçamento entre dois sentidos do conceito de cultura: o sentido antropológico (a cultura enquanto modo de vida) e o estético (cultura como produtos culturais). O resultado é a ampliação da noção, que passa a englobar não só a chamada alta cultura, mas também as tradições populares e as práticas cotidianas.
Tal processo corresponde à ampliação dos mercados e bens culturais, uma vez que a "aquisição e o consumo de mercadorias, atos supostamente materiais, são cada vez mais mediados por imagens culturais difusas (...), nas quais o consumo de signos ou os aspectos simbólicos de bens tornam-se fontes importantes da satisfação delas derivada" (Featherstone 1997, p. 137). Trata-se, portanto, de um processo que inclui a reconfiguração do papel de instituições e eventos culturais. Neste contexto, mesmo os museus reordenam seus objetivos e práticas. Os museus tradicionais, caracterizados por visarem um público seleto e organizado a partir da autenticidade dos objetos expostos, são parcialmente substituídos pelo dinamismo do "museu-informação", desenvolvidos
em função das grandes metrópoles e de suas multidões anônimas, definindo-se a partir de suas relações com o mercado, com um vasto publico voltado para o consumo de informações e bens culturais. Ele existe basicamente para atender a esse público e pelo qual se vê na contingência de competir com os meios de comunicação de massa. (Gonçalves 2003, p. 183).
Podemos concluir que os habitantes da cidade contemporânea dependem diretamente da mediação da mídia (especialmente a publicidade, o jornalismo cultural e outros promotores culturais) para compreenderem e se integrarem à civilização urbana:
Os processos de comunicação reunidos ao redor da produção da imagem da cidade, seus atores e discursos tecidos em precisas correlações de poder, levam à configuração de um novo ethos ou código social, um conjunto de valores que
68 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
estimulas formas de ser e viver nas cidades de hoje. (...) outros códigos, provenientes de atores sociais insatisfeitos com o senso comum reprodutor dos clichês oficiais, encontram dificuldades para ganhar espaço e expressão. Essas possibilidades e limites tornam centrais os temas da comunicação e do marketing de cidade no debate sobre a vida urbana e no desenho de cenários de futuro. (Sanchez 2001, p. 157)
Por conta destas transformações, Felix Guattari propõe a coexistência de três categorias de cultura na atualidade: a cultura valor, baseada nas diferenças de conhecimento entre classes e em julgamentos de valor; a cultura-alma coletiva, de base territorial, próxima ao conceito antropológico de cultura; e cultura-mercadoria, industrializada, produzida de forma dinâmica e de forma a impregnar todas as dimensões da vida social. Neste último sentido,
A cultura são todos os bens: todos os equipamentos (casas de cultura, etc.), todas as pessoas (especialistas que trabalham neste tipo de equipamento), todas as referências teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento, enfim, tudo o que contribui para a produção de objetos semióticos (livros, filmes, etc.), difundidos num mercado determinado de circulação monetária ou estatal. (Guattari 1986, p. 17)
Se partirmos da tese de que a cultura urbana se configura por meio da articulação destes significados (equipamentos, intermediários culturais, referências teóricas) perceberemos que a estrutura urbana assume papel central na organização das sociedades atuais. Hoje, "a própria imaginação da nacionalidade implica o reconhecimento da complexidade de suas fronteiras internas, externas, simbólicas, econômicas, políticas ou geográficas, reconhecimento este que tem sua chave nos subtextos que a cidade vêm oferecendo" (Holanda 1994, p. 4). Convêm lembrar também que as cidades deixem de ser centros industriais típicos para se tornarem centros de serviços e comércio e sedes de gestão do capital financeiro. O capitalismo mundial integrado, ao provocar um enfraquecimento dos estados nacionais, relativiza a hierarquia entre estados nacionais, estados e cidades, como prova a delegação de novas competências aos governos locais. Com efeito, as cidades substituem a nação como idéia sintetizadora das identidades culturais, tornando-se um espaço que possibilita a diversificação das representações de segmentos étnicos, de gênero, etários ou migrantes.
O contexto apresentado acima nos conduz a duas hipóteses. Em primeiro lugar, a convergência entre cultura-valor, cultura-alma coletiva e cultura-mercadoria no espaço urbano passa a caracterizar a fruição cultural. Em segundo lugar, na medida em que a cidade se torna
69 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
centro de produção e consumo, a cultura se torna parte constituinte dos processos de acumulação e controle social e político:
Os modos de produção capitalísticos (...) não funcionam unicamente no registro dos valores de troca (...), da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação, que eu chamaria de "cultura de equivalência" (...). Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura (...) o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. (Guattari 1986, p. 16)
Deste modo, o vínculo entre economia e cultura explicita uma nova ordem social e urbana. Hoje, não se trata apenas de discutir os efeitos da indústria cultural, mas principalmente compreender o papel das "indústrias criativas" na lógica contemporânea. Cidade e Economia da Cultura
Pode-se perceber nas duas últimas décadas uma ênfase na cidade como fonte de cultura de massa, expressa numa nova abordagem culturalista da cidade: uma espécie de "culturalismo de mercado" (Arantes 2001). Tal processo se notabiliza menos pela ênfase no caráter didático da "cultura-dado histórico" do que no uso da cultura como entretenimento, e na apropriação cultural como estratégia de fortalecimento do valor econômico, através de determinados usos do espaço urbano. Daí a importância da mercantilização da imagem urbana, a proposição de intervenções urbanas como processos de produção de "locais de sucesso" e a reorientação do consumo em direção à economia do lazer e à intensificação da fruição cultural.
Nas últimas décadas, cristalizou-se a idéia de que é necessário captar novos consumidores para um mercado de bens culturais mediante estratégias de promoção cultural. O incremento da circulação de informações e do setor de serviços e o processo de desmaterialização dos bens e produtos conduzem à valorização do "conhecimento" e da "criação", isto é, das qualidades culturais ou "semióticas" dos bens e serviços (Costa 1998). Neste processo, a cultura se torna decisiva para a evolução e competitividade da economia urbana.
Justifica-se, portanto, a concepção de cultura como modo de comunicar a cidade, no sentido de valorizar a imagem urbana aos possíveis interessados (habitantes, turistas, investidores, empreendedores), produzindo mensagens sobre os encantos da vida local. É este
70 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
7 O texto foi referendado no IV Fórum de Autoridades locais de Porto Alegre em Maio de 2004.
contexto que justifica o uso de um planejamento estratégico, que evoque um sentimento de "civismo" em relação à cidade, traduzido por meio de um marketing que visa vender a cidade interna e externamente. Consequentemente, mesmo a história da cidade se encontra subordinada às exigências da modernização econômica e comunicativa proveniente dos processos de globalização.
Tal convergência, na qual a cidade torna-se "território fundamental da diversidade cultural" está presente nas políticas culturais contemporâneas, como comprova a clausula 10 da Agenda 21 da cultura, documento redigido em 2004 durante o Fórum Universal das Culturas, ocorrido em Barcelona7:
A afirmação das culturas, assim como o conjunto das políticas que foram postas em prática para o seu reconhecimento e viabilidade, constitui um fator essencial no desenvolvimento sustentável das cidades e territórios no plano humano, econômico, político e social. O caráter central das políticas públicas de cultura é uma exigência das sociedades no mundo contemporâneo. A qualidade do desenvolvimento local requer a imbricamento entre as políticas culturais e as outras políticas públicas – sociais, econômicas, educativas, ambientais e urbanísticas (2004, p. 1).
Em conseqüência, a cultura passa a designar especialmente as atividades culturais - não só aquelas que possibilitam a crítica cultural ou o resgate de fatos significativos de determinada sociedade, mas principalmente aquelas que se legitimam pela sua rentabilidade. E estas atividades são rentáveis exatamente porque funcionam como ornamentos pessoais, modos de afirmação social, formas de entretenimento, ou fontes de atualização e/ou informação – e que provocam em última análise algum tipo de "gratificação psíquica", distinção sócio-econômica ou, simplesmente, ocupação lúdica (Costa 1998, Arantes 2000).
As atividades culturais e sua interpretação tornam-se códigos explícitos para definir o valor e o sentido do espaço urbano, pois, como lembra Canclini, "ser culto em uma cidade moderna consiste em saber distinguir o que se compra para usar, o que se rememora e o que se goza simbolicamente. Requer viver o sistema social de forma compartimentada" (Canclini 1997, p. 301, grifo meu). Significativamente, as "indústrias criativas" passam a fazer parte de projetos de reorganização de prioridades políticas, sociais e econômicas. No contexto atual, no qual bens, serviços, imagens e estilos de vida tornam-se experiências culturais consumíveis, a cidade torna-se cada vez mais o cenário produtor de subjetividades e identidades coletivas definidas pela apropriação e consumo cultural. Se até os anos 60, a cultura surgia como esfera autônoma baseada em valores antimercado, hoje ela
71 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
8 "O principio democrático acha-se então transformado de uma igualdade real, das capacidades, responsabilidades e possibilidades sociais da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a igualdade diante do objeto e outros signos evidentes do êxito social e da felicidade" (Baudrillard 1995, p. 48).
"ao tornar-se imagem, quer dizer, representação e sua respectiva interpretação [...], acabou moldando, de um lado indivíduos (ou coletividades "imaginadas") que se autoidentificam pelo consumo ostensivo de estilos e lealdade a todo o tipo de marca, e de outro um sistema de provedores de produtos simbólicos [...]" (Arantes 2000, p.16-7).
Em suma, os objetos culturais passam a ser vistos como signos distintivos na relação social. Trata-se do desdobramento de uma característica singular da cultura contemporânea: o processo de estetização do mundo - uma perspectiva que percebe objetos mais variados pela sua capacidade de produzir imagens e pela capacidade de representar, teatralizar ou simular experiências estéticas. Sintomas deste processo podem ser percebidos no "marketing das cidades" agindo sobre a identidade local, no enobrecimento de áreas históricas, nos tratamentos espetaculares de grandes projetos urbanos ou nas iniciativas culturais cada vez menos patrocinadas pelo estado e mais pelo capital privado.
Vale lembrar que a imagem, o estilo e a produção espetacular não são apenas formas de distinção, mas critérios de subjetivação. Neste contexto, a felicidade e o bem–estar também ganham um novo sentido: tornam-se mensuráveis pela posse de objetos e signos de consumo (No caso dos shoppings e condomínios, por exemplo, o que se consome é, primeiramente, os signos que evocam o sentimento de segurança). O sentimento de satisfação ou gratificação psíquica só se torna efetivo pelo "filtro" dos signos típicos do consumo - o que significa dizer, entre outras coisas, que a vida passa a depender menos dos laços com os semelhantes do que da capacidade individual de recepção e manipulação de bens e mensagens.
É neste sentido que o conceito de cultura não pode ser visto apenas como valor, mas como diz Guattari, a maneira pela qual as "elites capitalísticas" produzem um "mercado geral de poder". Logicamente, a cultura-massa depene da cultura valor para produzir relações de controle dissimuladas sob a forma de, por um lado, "democratização" e, por outro, "segmentação" ·8 – o que sugere a formação de novas formas de relacionar controle e hierarquização, desejo e consumo.
72 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
9 Ver, por exemplo, Guy Debbord, Sociedade do Espetáculo, São Paulo, Contraponto, 2000; Michel Maffesoli, A Contemplação do Mundo, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995, e Jameson (1997).
Cidade, mercado e consumo
Se pensarmos num significado de consumo que ultrapasse aquela que o define como a mera compra ou posse de objetos visíveis, chegaremos à conclusão de que a cidade é o laboratório no qual o consumo ostensivo e fetichista se estabelece. Trata-se, portanto, de perceber a cidade como lugar de consumo e consumo de lugar.
Segundo Baudrilliard (1995, p. 10-15), a sociedade do consumo se caracteriza por dois traços mais evidentes: a profusão e a panóplia. A profusão indica a multiplicação e a abundância de objetos consumíveis, que aparecem amontoados e presentes em todas as dimensões da vida cotidiana. A panóplia indica a integração de produtos como coleção de coisas consumíveis. Cada objeto ou mensagem se estabelece como "encadeamento de significantes e por isso orientam o impulso da compra em feixes de objetos". Dentro deste sistema, cada objeto evoca os outros no momento da compra, isto é, as mercadorias não são mais pensadas isoladamente, mas sim dentro de uma relação de reciprocidade e complementaridade.
A cidade é o cenário no qual se desenvolvem, de forma privilegiada, a profusão e os feixes de objetos. Embora o planejamento urbano queira classificar objetos e signos em determinados espaços sociais e em determinadas linguagens, prescrevendo modos de percepção "adequados", há nos espaços urbanos uma mescla de diferentes interesses (mercantis, comunicacionais, históricos, estéticos), que convergem hoje no uso econômico dos espaços públicos (Canclini 1997, p. 302-3). Deste modo, a cidade atual, fragmentada pelos problemas estruturais e sociais, só parece se reconciliar através da mídia ou pela rede de reciprocidade entre signos e objetos de consumo, pois tais objetos podem mascarar o caos urbano. Não é por outra razão que o shopping torna-se uma síntese superficial da cidade, com suas "praças de alimentação", "alamedas" e "avenidas". A dramatização espetacular típica deste tipo de localidade reduz a realidade a uma multiplicidade de signos, que neutralizam as tensões da realidade, criando uma distância segura em relação aos problemas reais do cotidiano.
Em nome deste império da visualidade, tudo é passível de ser estetizado, e todo consumo tende a consumo voyeurístico. É sintomático que pensadores de formações muito diferentes tenham destacado uma "ética da estética" típica das sociedades atuais9, calcada no
73 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
10 Ver, a esse respeito, Heitor Frúgoli, São Paulo - Espaços Públicos e Interação Social, São Paulo: Marco Zero, 1995. Segundo Frúgoli, "As apresentações artísticas, as relações de encontro e sociabilidade, o ócio (ou numa conceituação mais recente, o lazer) [...] acentuam-se, tornam–se visíveis, enfim, em seus centros públicos, espécies de corações da cidade, onde se intensificam seus pulsares". Frúgoli, p. 11-2.
culto à imagem e à beleza por parte de determinados grupos sociais, que se identificam pelo consumo não só de mercadorias, mas também de "estilos de vida", "sensações" ou formas de distinção econômica. Neste processo, mesmo aquilo que mais caracterizava as cidades (os seus centros históricos e culturais, os monumentos, as praças) se mercantilizam:
O próprio centro cultural torna-se parte do centro comercial. Não vamos apenas pensar que a cultura se prostitui no seu interior, seria demasiado simples. Culturaliza-se. Ao mesmo tempo a mercadoria (vestuário, especiarias, restaurantes etc.) culturaliza-se igualmente, porque surge como categoria lúdica e distintiva, em acessório de luxo, em elemento no meio de outros elementos da panóplia geral dos bens de consumo (Baudrillard 1995, p. 18)
Podemos arriscar a hipótese de que "Culturalização" citada por Baudrillard está a serviço do que Guattari chama de "mais valia de poder" – a expropriação e controle social fundado na cultura enquanto valor, e não no dinheiro (base da mais-valia econômica). A "mais valia de poder" está na ordem do dia nos espaços urbanos, onde a busca pelo prestígio e pela diferenciação social é mais intensa do que a própria produção material. Portanto, não se pode esquecer a relação entre consumo, poder e segregação:
A segregação no "habitat" não é nova, mas (...) tende a tornar-se decisiva, tanto pela segregação geográfica (centro das cidades e periferia, zonas residenciais, guetos de luxo e cidades dormitórios, etc.) como no espaço habitável (...). Os objetos têm hoje menos importância que o espaço e que a marcação social do espaço. O habitat constitui assim possivelmente uma função inversa da dos outros objetos de consumo. Função homogeineizante para uns, função discriminadora para outros, no que respeita ao espaço e à localização. (Baudrillard 1995, p. 56, grifo meu)
Convêm lembrar também que a ênfase na organização racional e econômica das cidades faz com que seus espaços públicos percam sua capacidade de concentrar formas de sociabilidade. Assim, há uma tendência a degradação da esfera pública, e a conseqüente expansão dos espaços fechados (como shopping centers ou os condomínios) em detrimento das antigas referências urbanas. Daí a desertificação e a decadência de áreas emblemáticas da cidade. No contexto capitalista atual, a dimensão simbólica e lúdica10 da experiência urbana - que inclui o imprevisto, o encontro, o "teatro espontâneo" -, se subordina à lógica do consumo e do planejamento racionalista. A mesma modernização que permitiu a liberdade dos projetos individuais e sociais modernos provoca, hoje, um empobrecimento dos espaços públicos, a
74 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
impessoalidade das relações sociais, o "embotamento da capacidade de discriminar", para usar o termos de Simmel.
Considerações Finais
As questões discutidas ligeiramente neste trabalho indicam vários desafios para as ciências humanas. Em primeiro lugar, é necessário compreender o paradoxo no qual a cidade se encontra: enquanto lugar público, nunca esteve tão invisível – embora os discursos e metáforas sobre a cidade estejam tão presentes.
Multiplicam-se as estratégias econômicas, políticas e simbólicas que visam "o futuro das cidades". A internacionalização do capital e a emergência das novas tecnologias, que possibilitam a formação de um sistema de comunicação mundial, acabam por converter a cidade em um espaço sócio-comunicacional, não só porque a idéia que hoje temos da cidade passa pelo foco da mídia, mas também porque as técnicas de comunicação passam a ser elementos essenciais das políticas urbanas locais. A essa questão, deve-se acrescentar a importância atual que a globalização possui no discurso de política urbana.
As recentes tentativas de "revitalizar" Rio de Janeiro e São Paulo demonstram que a "diversidade", a "cultura" e a "tradição" passaram a ser palavras de ordem para os interessados em incorporar as cidades ao mercado global. Por isso, pode-se perceber a tendência em enobrecer determinados espaços, de modo que eles representem o bom gosto e os padrões de consumo de determinados segmentos sociais, e a ênfase na capacidade de atrair convenções e eventos internacionais, de investir no "turismo de negócios", da ênfase nos tratamentos espetaculares do espaço urbano, projetados por arquitetos de renome internacional. Consequentemente, mesmo a história da cidade se encontra subordinada às exigências da modernização econômica e comunicativa proveniente dos processos de globalização.
Por fim, torna-se relevante refletir a respeito da cidade-empresa cultural, geridas como (e para o) negócio, e planejadas segundo os fluxos de capitais e signos do consumo. Neste sentido, corre-se o risco de se enfatizar as noções de cidade-espetáculo e cidade-turismo, desconectadas de outras funções essenciais do espaço urbano, o que minimiza (ou melhor, mascara) a intensidade dos problemas sociais e a própria crise urbana que se instalou nas últimas décadas. Tal ideologia fica claro nos discursos recentes do atual prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia ("Hoje, ser prefeito de uma grande cidade é estar no centro do processo
75 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421.
de globalização") e do ex-prefeito Luis Paulo Conde ("O Rio lida com a crise produzindo cultura").
O risco, neste ponto, é a neutralização dos problemas e tensões que são características da realidade urbana, bem como a desvalorização das determinações históricas, sociais e políticas que compõem a singularidade e o encanto de nossas cidades.
76 PIO, Leopoldo G. Entre o Lugar e a Metáfora: cultura e comunicação na cidade contemporânea. Disponível em www.projetosexperimentais.com. Ano 1 – número 2 – Vol. 2 – 1º semestre de 2008. 12p. ISSN: 1982- 2421. 77
Referências Bibliográficas
Arantes, Otília. "Uma estratégia fatal: A cultura nas novas gestões urbanas". Otília Arantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando Consensos. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2000.
Argan, Giulio Carlo. A História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
Baudrilliard, Jean. A Sociedade do Consumo. Lisboa: Elfos, 1995.
Canclini, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo, Edusp, 1997.
Costa, Pedro. "A Fileira das Atividades Culturais e a Economia Urbana". Paper apresentado no I Congresso Português de Sociologia Econômica. Disponível na internet: (http://pascal.iseg.utl.pt/~socius/2/ce/cepc2.htm), julho de 1998.
Featherstone, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade, São Paulo, Studio Nobel/ SESC, 1997.
Lefebvre, Henri O Direito a Cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.
Ferrara, Lucrécia D’Alessio, "Imagem da cidade e representação urbana". In Olhar Periférico - Informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: EDUSP 1993, p. 245-262
Freitas, Ricardo Ferreira. "Corpo e Consumo: a estética carioca". In Nizia Villaça, Que corpo é esse? Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
Fórum Universal das Culturas. Agenda 21 da Cultura - Um compromisso das cidades e dos governos locais para o desenvolvimento cultural. Barcelona, 2004.
Gonçalves, José Reginaldo. "Os museus e a cidade". In Regina Abreu e Mario Chagas (orgs.) Memória e Patrimônio – ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP &A Editores, 2003, pp.175-189.
Guattari, Felix. "Cultura: Um conceito reacionário?". In Microplíticas: Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
Holanda, Heloísa Buarque de. "Cidade ou cidades? Uma pergunta à guisa de introdução". Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, 1994, p. 14-17.
Jameson, Fredric. "Transformções da imagem na pósmodernidade". Espaço e Imagem: teorias do pósmoderno e outros ensaios, Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
Sanchez, "A (in) sustentabilidade das cidades vitrine". In Acserlarad, Henri. A duração das cidades – sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001.
Simmel, Georg. "A Metrópole e a Vida Mental". Gilberto Velho (org.), O Fenômeno Urbano, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

Nenhum comentário: